quarta-feira, 1 de dezembro de 1993

BIBLIOTECA, LEITURA E DESENVOLVIMENTO: algumas considerações

Apresentamos um trabalho de Francinete Fernandes de Sousa, Vanildo Mousinho Marinho e Walkíria Toledo de Araújo. 

O artigo tece considerações sobre a inter-relação entre os conceitos Biblioteca, Leitura e Desenvolvimento, dentro de uma perspectiva social, cultural e educacional. Analisa a questão das diferenças sócio-culturais entre uma reduzida minoria que tem acesso à leitura e uma expressiva maioria que não lê. Enfoca a relevância da biblioteca como espaço de reflexão para o desenvolvimento de políticas de leitura, que possibilita transformar a informação em formação dos sujeitos sociais implicados no processo. É baseando-se nestas ideias que Francinete, a partir de 1993 cria o projeto Casas de leitura-Escrilendo. O texto na integra pode ser baixado no seguinte link: https://docs.google.com/file/d/0B8JEgSmUkN4jWnBOVmFRZ1NNd2c/edit

INTRODUÇÃO
Um enfoque adequado ao tema proposto exige um esclarecimento prévio sobre o sentido que se atribui aos termos BIBLIOTECA, LEITURA e DESENVOLVIMENTO. Entende-se a biblioteca como sendo um sistema de informação para servir aos usuários, bem como parte integrante do trabalho de educação e desenvolvimento da comunidade onde está inserida. Essa instituição deve estar sempre a serviço do desenvolvimento da sociedade. A leitura, segundo Martins (1982), pode ser conceituada como sendo um processo de compreensão de expressões formais e simbólicas não importando por meio de que linguagem. A leitura é um fenômeno extremamente complexo, que proporciona possibilidades variadas de entendimento da relação sujeito-sociedade. Esta não se limita, apenas, à decifração de alguns sinais gráficos. É muito mais do que isso, pois exige do indivíduo uma participação efetiva enquanto sujeito ativo no processo, levando-o a construção do conhecimento. Para Perroti (1993), a formação de um quadro vivo de leitores. não se dá no vazio ou apenas no acaso. A leitura é um ato social e historicamente demarcado, sendo as instituições as grandes mediadoras do vínculo entre leitura e sociedade. No contexto do presente artigo, adotou-se para o termo desenvolvimento a definição de Garcia (1982) que afirma ser este a transposição de uma etapa defasada em relação às necessidades emergentes, as quais incorporam um sentido de melhoria em relação à situação que se quer vencer. Nestas circunstâncias, o trinômio "biblioteca, leitura e desenvolvimento" pode ser analisado de forma que o ato de ler possa ser visto como elemento ativo de melhoria do nível cultural, educacional, social e econômico da população.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRINÔMIO: BIBLIOTECA, LEITURA E DESENVOLVIMENTO
Muito se tem discutido sobre o crítico processo de desenvolvimento científico e tecnológico porque passa o Brasil. Sendo assim, o problema exige sérias modificações na estrutura organizacional. No entanto, as reformas nesse campo e na área educacional só poderão se concretizar, efetivamente, se forem integradas aos planos de desenvolvimento social, político e econômico. A educação é propulsora do desenvolvimento econômico e social de um povo. A leitura torna-se de vital importância no processo ensino-aprendizagem, sendo encarada pelos professores e educadores como um ato que extrapola toda a simbologia de sinais gráficos. Assim, o ato de ler é de suma importância no processo de desenvolvimento de um país. No curso da História da Humanidade tem-se, de fato, valorizado a leitura como veículo transformador da espécie humana. Ela é, sem dúvida, um meio significativo de participação social, de desenvolvimento e promoção individual. Este pensamento pertence a uma área de estudo multidisciplinar, na qual predominam as pesquisas sociológicas e psicológicas. No entanto, a leitura constitui-se, ainda, num campo que merece estudos cada vez mais aprofundados, que resultem em propostas viáveis no processo de conhecimento deste fenômeno. O Governo, a sociedade civil organizada (escola, professores, pais, pedagogos, bibliotecários etc) devem estar convencidos da importância da leitura da palavra para a vida individual, social, cultural e mesmo econômica de um povo. Nos países desenvolvidos ela está posicionada numa escala de valores ocupando lugar privilegiado. A História está atenta à diferença cultural existente entre a reduzida minoria de indivíduos que lê e a grande maioria que não lê. Esta constatação pode ser verificada, também, quando se observa o modelo econômico capitalista que proporciona uma perversa distribuição de renda, tendo como conseqüência, absurdas desigualdades sociais, gerando o analfabetismo, a alienação e o desinteresse pelo material escrito. A passagem para a civilização escrita demandou significativo espaço de tempo. A difusão da palavra escrita se concretizou de maneira muito lenta. Nos primórdios da civilização, a vida das comunidades era controlada pela minoria de anciãos, que acumulavam e detinham todo o conhecimento legado por seus ancestrais, constituindo-se, assim, em detentores do poder da informação. Com o advento da escrita, o poder da memória oral foi relegado a segundo plano. A palavra escrita passou a ser predominante, constituindo-se privilégio das classes eclesiásticas, que não permitiam o acesso, por parte das camadas social e economicamente desfavorecidas, a este código lingüístico. Mas isso não é apanágio apenas das sociedades passadas. Até hoje, na sociedade contemporânea, a leitura é um privilégio das classes abastadas: a burguesia e setores avançados da classe média. Desta forma,os estudiosos da área (comunicadores, pedagogos, bibliotecários entre outros), geralmente associam o interesse pela leitura a duas variáveis relevantes: o nível de renda e o nível educacional. O ato de ler exerce grande influência sobre a postura de um indivíduo, de um grupo ou de uma nação. Fazendo uma analogia do pensamento de Paulo Freire, quando de sua palestra no XI Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação, realizado em João Pessoa (1982), no qual ele aborda a questão da alfabetização e bibliotecas populares, podemos dizer que o mito da neutralidade da informação, que pode levar a pureza da mesma, torna-se enganoso. É ilusório e ingênuo considerar a nossa atitude a serviço da humanidade, em qualquer área de atuação, como sendo uma ação abstrata. A atitude de um profissional da área de educação, bem como a de um profissional ligado à área da Ciência da Informação, é permeada por um conteúdo ideológico que pode estar explícito ou não. Portanto, sua prática se refletirá nas ações dos sujeitos sociais envolvidos no processo, quer de aprendizagem, quer de meros receptores de informação. Nesse sentido, é possível exemplificar as atitudes de alguns governos, que proíbem a impressão e venda de algumas obras, especialmente as de cunho político, consideradas nocivas aos seus interesses. Nos países socialistas a leitura é mais valorizada, basicamente em função de dois aspectos: pelas conquistas obtidas no plano social e econômico (melhor nível de vida, maiores oportunidades de educação, mais tempo livre etc) e, principalmente, pela prioridade que se dá ao material de leitura (o seu barateamento, o seu acesso a todos indistintamente). Nesse sistema de governo, o livro marca presença em todos os lugares da vida humana: no lar, na escola e no trabalho. A prática da leitura nessas sociedades se democratizou, tanto que se tornou uma atividade intelectual prazerosa e amplamente difundida na cultura popular. No Brasil, a democratização da leitura está condicionada é democratização política de nossa sociedade. Isso demanda uma forte transformação na estrutura social e econômica do país, significando, também, uma luta política pela conquista de melhores condições de vida para as classes trabalhadoras. Essa melhoria de qualidade de vida seria representada por melhores salários, empregos, transporte, moradia, por fim, acesso à informação e ao conhecimento. Por conseguinte, dissociar democratização da leitura das demais lutas sociais e políticas, constitui uma atitude ingênua, desvinculada de todo um processo dialético inerente às sociedades humanas. A maioria da população brasileira possui um salário que mal permite a sobrevivência: alimentação, vestuário, transporte, habitação. Portanto, não se permite sequer sonhar com dinheiro para a compra de material de leitura, a não ser aquele indispensável à formação escolar dos filhos. O povo que não se vê sequer representado politicamente, não elegendo seus representantes, também não se sente motivado, quando dispõe de algum excedente financeiro (caso da classe média), a fazer da leitura um instrumento de reflexão e de educação continuada. Outro aspecto que serve de entrave ao desenvolvimento da leitura é a tradição oral do povo brasileiro. A prática da oralidade e a falta de estímulo para leitura advém do analfabetismo, significando, hoje, um percentual em torno de 40% da população brasileira. Mello (1981, p. 68) demonstra muito bem a situação de leitura no nosso país quando afirma que: Um dos traços marcantes da evolução cultural brasileira, é sem dúvida, a resistência à leitura. Somos um país onde pouco se lê [...] o fenômeno reproduz situações criadas pela marginalização escolar que atinge a grandes contingentes das classes trabalhadoras, gerando um analfabetismo crônico, que inclui os que aprenderam a ler e os que foram induzidos a não gostar de ler. Alguns autores explicam essa questão apontando para a natureza oral da cultura brasileira, estigmatizada pela retórica, pelo discurso, pelo palavrório. E mostram, também, a distorção que se criou em torno da leitura, quase nunca aceita como algo útil, ou que dá prazer, mas recebida como atividade obrigatória e aborrecida. O Estado tem grande responsabilidade sobre o incentivo à leitura. Ele, na realidade, tem desempenhado um papel de omissão, de descompromisso na área educacional e cultural, sem definição de uma política nesse campo. As bibliotecas e os bibliotecários são agentes da problemática da leitura e de sua relação no desenvolvimento da Nação. Evidentemente, as funções gerais da biblioteca são relevantes em qualquer país, mas deveriam merecer maior atenção nos países e regiões menos privilegiados, onde a população, por dispor de menos recursos pessoais, precisa de maior apoio. No Brasil, essa instituição pode, sem dúvida, colaborar para reduzir as diferenças sócio-culturais. Esta assertiva é baseada em vários estudos que têm demonstrado como as bibliotecas, ao longo do curso da História, ocuparam uma parte da organização social que cresceu e se diversificou para atender às mudanças e necessidades sociais. Nos últimos anos, tornou-se evidente que a educação formal, ou seja a escola, isoladamente, não satisfaz às exigências da sociedade moderna. É neste contexto que a biblioteca pode desempenhar um papel relevante na sociedade. No exercício da função em educação não formal, por conseguinte, a biblioteca vai além dos seus limites de apoio à escola quando estimula sua clientela - o educando - a uma freqüente e permanente busca de informação, mesmo não havendo vínculo sequer com a escola. Esse incentivo denomina-se, assim, de educação continuada. Dentro deste posicionamento é importante lembrar que a maioria das bibliotecas desenvolvem atividades que exigem do público a habilidade, ou pelo menos, um razoável conhecimento de leitura. Esta habilidade, no entanto, não deve se restringir, apenas, à codificação e decodificação do código lingüístico. Este potencial deve ser estimulado e desenvolvido através de uma prática continuada. Seria conveniente que as bibliotecas desenvolvessem programas incentivadores da leitura entre os diferentes segmentos da sociedade, principalmente aqueles cujo nível de autonomia do ato de ler seja baixo. As bibliotecas podem contribuir ativamente para a educação e o desenvolvimento dos povos em todos os aspectos. Elas devem participar do desenvolvimento da ciência e tecnologia, difundir os conhecimentos profissionais e favorecer a iniciativa criadora do homem. O progresso técnico e econômico intensifica a necessidade de ler. A necessidade de aprender gera uma premência de leitura. Sabe-se, porém, e não pode deixar de ser ressaltado, que a biblioteca apesar de ser um instrumento privilegiado na promoção da leitura, funciona, no Brasil, de maneira precária, chegando em algumas cidades brasileira a não existir. (PERROTTI, 1993) Já foi dito que as classes desprivilegiadas, representadas pela maioria da população brasileira, não dispõem de recursos suficientes para a aquisição de livros e, lamentavelmente, a leitura ainda é monopólio das classes favorecidas. E, sendo função da biblioteca oferecer possibilidade de leitura a toda comunidade, cabe-lhe, pois, desenvolver o conceito de que este ato de ler é de grande relevância para a criação de valores éticos, intelectuais, estilísticos, bem como a possibilidade de entretenimento da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe, à sociedade como um todo, estabelecer nas instituições, quer públicas, quer particulares, o desenvolvimento e manutenção da prática de leitura entre os cidadãos. Considera-se, portanto, que a leitura é um fato histórico e social o qual encerra grande complexidade, devendo deixar de ser objeto de programação técnica para responder a uma necessidade real, passando a fazer parte do cotidiano das pessoas. (ORLANDI, 1988) Sendo assim, pode ser enganoso pensar que a mera redefinição de objetivos para a biblioteca e a educação significará mudanças. Em acordo com Perrotti (1993), podemos dizer que são os questionamentos das condições a que estão submetidos os sujeitos sociais presentes no processo educacional e informativo, que permitirão modificações no que se refere à promoção da leitura, obtendo como consequência, portanto, sujeitos conscientes do seu direito à informação e capazes de fazerem reflexões aprofundadas que enriquecerão sua leitura de mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREIRE, Paulo. A educação de adultos e bibliotecas populares. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 11. Anais... João Pessoa: Associação Profissional dos Bibliotecários da Paraíba, 1982. v.2 GARCIA, Walter E. A biblioteca no processo de desenvolvimento. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAÇÃO, 11. Anais... João Pessoa: Associação Profissional dos Bibliotecários da Paraíba, 1982. v. 2
MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MELO, José Marques de. Presença do jornal na escola: iniciação ao exercício da cidadania. In: _____. Comunicação e libertação. Petrópolis: Vozes, 1981.
ORLANDI, Eni Pucinelli et al. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas. Editora da Unicamp, 1988.
PERROTTI, Edmir. Leitura, confinamento e infância. Campinas: Summus, 1993 In: Inf. & Soc.:Est, João Pessoa, v.3, n.1, p.42-46, jan./dez. 1993